quarta-feira, junho 22

Todos os dias...

Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.


Alberto Caeiro

terça-feira, abril 26

O menino e as estrelas-do-mar

Um belo dia, depois de uma tempestade, um menino foi à praia e viu milhões de estrelas-do-mar espalhadas pela areia, a morrer. O menino, ao ver isto, não pôde deixar que as estrelas morressem e começou a pô las uma a uma dentro de água. Um homem que passava perto dali, ao ver o menino empenhado numa tarefa tão inútil, perguntou lhe:
– Porque estás a pôr essas estrelas-do-mar de novo na água? São milhares de estrelas-do-mar e tu és só um, nunca vais conseguir devolvê las todas ao mar.
E o menino respondeu:
– Pode não fazer diferença nesta praia imensa, mas faz a diferença para esta estrela-do-mar que eu acabei de colocar na água.

[história de tradição oral]

terça-feira, março 15

Vento...

Leve, leve, muito leve,

Um vento muito leve passa,

E vai-se, sempre muito leve.

E eu não sei o que penso

Nem procuro sabê-lo.


Alberto Caeiro

quarta-feira, fevereiro 23

Nao sei se é sonho,se realidade...

Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sol se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser.
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nessa terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.



- Fernando Pessoa -

Que lindo, este poeta está-me a fascinar!!

quarta-feira, janeiro 19

When Alice asked the Cheshire Cat which road she should take, he asked her where she wanted to go.

"I really don’t know. I suppose it doesn’t really matter," she replied.

"Well, then I suppose it doesn’t matter what road you take," he aptly remarked.

Lewis Carroll, "Alice in Wonderland"

sábado, janeiro 1

Que palavras poderei buscar para vos aquentar o coração? Um santo, no sermão desta festa, bradava: — Oh! que nenhumas palavras acho com que possa falar da Palavra Eterna e Verbo Encarnado! Assim eu também não vos sei declarar o que havemos de sentir deste suavíssimo Nascimento. Porém, quero-vos pôr uma comparação. Se houvesse muitos anos que o sol não nasceu nem apareceu nas terras, e estivéssemos todos não somente às escuras e em espessas trevas mas também carregados de ferro, tremendo com frio e em suma tristeza, e, estando assim, subitamente nascesse o sol mui resplandecente, alumiando-nos, aquentando-nos, quebrando nossas cadeias e prisões, que vos parece quão grande alegria e consolação seria a nossa?

Pois, irmãos, tais éramos, espiritualmente, antes que nascesse o sol que hoje nasceu e veio alumiar as trevas e cegueira de nossa alma; veio aquentar a frieza de nosso coração, o qual estava feito um regelo no amor de Deus e das cousas eternas; veio quebrar as cadeias de nossos pecados. (...)

As maravilhas desta clara noite excedem todas quantas viram os antigos Servos de Deus: porque, como diz um Santo, os nossos padres antigos muitas e grandes maravilhas de Deus viram. O Céu lhes orvalhou manjar de Anjos para seu mantimento. O Mar Roxo se lhes abriu em carreiras para que pudessem passar a pé enxuto. O rio Jordão se retirou para a fonte donde nascia para lhes dar livre passagem. Os muros fortíssimos da cidade de Jericó caíram subitamente a som de trombeta. O Sol se deteve no Céu por um grande espaço sem se mover, para que o povo de Deus, que pelejava contra seus inimigos, acabasse de os destruir. Estas e outras maravilhas viram: mas não lhes foi dado ver a verdadeira Luz Eterna, coberta com a nuvenzinha de carne de menino e posta em um presépio por amor de nós.

Bartolomeu dos Mártires
[extracto do Catecismo distribuído no sínodo bracarense de Novembro de 1564. in Antologia de Espirituais Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994]