sexta-feira, outubro 8

O preço da liberdade

Há várias maneiras de classificar as pessoas. Um amigo meu costuma classificá-las entre as que são importantes e as que o não são - sendo que importante, aqui, significa apenas, e é muito, aquilo que merece a nossa importância, a nossa atenção, e o que o não merece: parece-me, todavia, um critério curto. Uma amiga minha gosta de as classificar, simplesmente, entre boas e más pessoas - bons e maus caracteres: parece-me um critério que faz sentido, mas que abrange apenas o domínio das relações pessoais. Mas, se pretendemos classificar as pessoas pelo critério da cidadania, a classificação que sempre tive como fundamental é a que distingue os homens livres dos capachos.

O grande mal português é que temos, verdadeiramente, poucos homens livres. Pouca gente, poucos cidadãos, que estejam dispostos a viver a sua vida, a construir o seu caminho, sem terem de prestar vassalagem a várias formas de poder. Os arquitectos não são livres, porque dependem dos interesses económicos do dono da obra. Os médicos não são livres, porque, regra geral, querem ser simultaneamente profissionais liberais e assalariados do Estado. Os advogados de sucesso não são livres, porque dependem da consultadoria dos governos e do tráfico de influências entre os negócios, o poder e o patrocínio. Os empresários não são livres, porque dependem dos subsídios, das isenções fiscais e da atenção do governo nos concursos públicos. Os intelectuais não são livres, porque estão quase sempre dependentes de empregos, bolsas ou subsídios públicos, os quais acabam inevitavelmente por pagar com simples fretes de propaganda partidária. Os jornalistas, quase todos, não são livres, porque dependem do pequeno chefe, o qual reporta ao editor principal, o qual deve satisfações ao proprietário, o qual tem de prestar atenção aos humores e sensibilidades do poder da hora.

Portugal não é, nunca foi, um país de homens livres, de homens verdadeiramente amantes da liberdade, para quem a liberdade seja tão importante como poder respirar. A grande e púdica mentira em que temos vivido nos últimos trinta anos é a de ter acreditado, ou fingido acreditar, que no dia 26 de Abril de 1974 éramos todos pela liberdade. Desgraçadamente, nesse longínquo dia, não era "a poesia que estava na rua", mas sim a hipocrisia. A liberdade não se encontra ao virar da esquina - conquista-se, merece-se e alcança-se, por si próprio e individualmente, com riscos e com perdas, e não a coberto da protecção fácil das multidões ou das leis.

Não há lei que possa declarar um homem livre, se ele próprio não está disposto a bater-se pela liberdade que lhe deram e a pagar o preço que ela exige - sempre.

Pagamos, e temos pago, bem caro o preço inverso: o preço de não sermos e nunca havermos sido uma nação de cidadãos amantes da liberdade - não a de cada um, individualmente, mas a de todos. O preço de termos empresários que vivem do favor do Estado, sindicatos que vivem do abrigo partidário, intelectuais que vivem das migalhas do orçamento da cultura. O preço de sermos dependentes, tementes e subservientes. As nações de homens livres prosperam; as nações de gente subserviente definham: cada vez estamos mais próximos do México [...] e cada vez mais distantes da Espanha ou da Inglaterra. Temos, exacta e friamente, aquilo que merecemos.

Por ora, não vou perder-me nos sórdidos detalhes desta semana portuguesa, em que de repente foi como se toda a podridão escondida tivesse vindo à superfície. Vi vermes rastejando em directo televisivo, vi o medo, a subserviência, o preço, estampado na cara de gente porventura boa, ouvi razões e argumentos de estarrecer, conheci factos e circunstâncias que nem nos meus mais negros momentos de descrença julguei serem possíveis nesta desilusão a que chamamos Portugal. Por ora, contenho-me, porque o nojo e a revolta são ainda tão presentes que ofuscam a lucidez e a serenidade que certas coisas exigem absolutamente. Mas quem me lê sabe que apenas preciso de tempo e de recuo - como quem recua perante um quadro para melhor o ver.

Aliás, impõe-se a distância necessária para tentar entender que país é este, que cidadãos são estes e o que verdadeiramente os preocupa: a vaca a ser mungida na Quinta das Celebridades ou o Governo a ser mungido na Quinta dos Influentes?
[...]

Miguel Sousa Tavares - Público 8 Out 2004

3 comentários:

Luís disse...

Não foi isso que eu quis dizer e acho que também não era essa a intenção do MST.
O problema é as pessoas viverem como se ainda estivessem numa ditadura! Fazem asneiras, sabem que estão a fazê-las, mas acham que alguém há-de tratar disso...

Luís disse...

Uma comparação:
Um Estado pode ser comparado a uns pais. Se forem demasiado controladores/proteccionistas , o filho nunca irá crescer, nunca irá saber desenrascar-se. Estará sempre à espera que os pais lhe resolvam os problemas. É um pouco o que acontece com a nossa população. Está sempre tudo à espera que o Estado/Governo resolva os problemas todos. A culpa é sempre do Estado/Governo.
Se os pais forem demasiado permissivos, os filhos ficam uns mal-criados, não sabendo respeitar regras.. O país fica tudo uma selva!
É necessário um meio termo. É preciso que haja regras para conseguirmos viver todos juntos, mas também é preciso que o Estado se meta na vida das pessoas apenas no que for essencial. Eu sou da opinião de que o Estado Português deveria ter menos influência nas nossas vidas. Mas concordo que a nossa população não está preparada para isso.

Di disse...

e tenho dito...é preciso acordar para a liberdade...